(*) Por Ariovaldo Lunardi
No dia 4 de outubro do Ano Jubilar de 2025, quando a Igreja celebra a memória de São Francisco de Assis, o Papa Leão XIV assinou a sua primeira Exortação Apostólica, intitulada “Dilexi te” (“Eu te amarei”), publicada no início deste mês. Esta Exortação segue o caminho traçado pela Encíclica “Dilexit nos”, do Papa Francisco, uma profunda meditação sobre o amor humano e divino que brota do Coração de Jesus. Nela, o Santo Padre convida todos os irmãos e irmãs na fé a redescobrir o coração como o centro da pessoa e da vida espiritual — o lugar onde Deus habita e transforma. É interessante recordar que o Papa Francisco já havia começado a “rascunhar” a “Dilexi te”, mas, com seu falecimento em 21 de abril de 2025, não pôde conclui-la. O Papa Leão XIV, em suas próprias palavras, afirma: “Ao receber como herança este projeto, sinto-me feliz em assumi-lo como meu — acrescentando algumas reflexões — e em apresentá-lo no início do meu pontificado, partilhando o desejo do meu amado Predecessor de que todos os cristãos possam perceber a forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu chamamento a tornarmo-nos próximos dos pobres.” Antes de adentrarmos na análise da “Dilexi te”, é oportuno recordar a “Dilexit nos”, que lhe serve de alicerce espiritual. Logo nas primeiras linhas da “Dilexit nos”, o Papa Francisco recorda as palavras de São Paulo: “Ele nos amou.” Com elas, afirma que o amor de Cristo é o fundamento da fé e da existência cristã. O Coração aberto de Jesus é o sinal visível do amor incondicional de Deus pela humanidade — o refúgio onde cada pessoa pode encontrar misericórdia, ternura e vida nova. O Santo Padre aprofunda o sentido espiritual do coração, lembrando que, segundo a tradição bíblica, ele é o centro da pessoa, onde se unem razão, sentimento e vontade. É o santuário interior onde se decidem as intenções, os valores e os caminhos da vida. Em contraste, observa que a sociedade contemporânea, marcada pela pressa, pela superficialidade e pelo excesso de tecnologia, parece ter “perdido o coração”, tornando-se fria e desumanizada. “Eu sou o meu coração” — escreve o Papa —, pois é nele que se revela nossa identidade espiritual e nossa capacidade de amar e de nos abrir ao outro. Na “Dilexit nos”, o Papa denuncia um mundo “sem coração”, que, ao perder a ternura e a empatia, perde também a capacidade de amar e de encontrar Deus. Recorda que é Cristo quem nos revela o Coração do Pai: por meio de gestos concretos, de Sua proximidade aos pobres, aos doentes e aos pecadores, Ele manifesta a ternura divina. Seu olhar transforma, Suas palavras curam e Suas lágrimas revelam um Deus que se comove, se alegra e sofre conosco. Na cruz, o amor chega ao seu ponto mais alto: “Ele nos amou e entregou-se por nós.” O saudoso Papa Francisco aprofunda, assim, a teologia e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, ensinando que não se trata da adoração de um símbolo físico, mas da Pessoa viva de Cristo. O Coração de Jesus é o ícone do amor divino e humano unidos em perfeita harmonia — amor que abraça, redime e restaura. Longe de ser uma devoção meramente afetiva, o culto ao Sagrado Coração é o resumo do Evangelho: uma fé que une ternura e adoração, contemplação e serviço. O Coração de Cristo revela ainda o mistério da Santíssima Trindade: o amor do Filho que conduz ao Pai, no sopro vivificante do Espírito Santo. Do Coração traspassado de Jesus jorram sangue e água — fontes da graça e da vida nova. É desse Coração aberto que nasce a missão da Igreja: saciar a sede espiritual da humanidade, curar feridas, servir com compaixão e reconciliar os corações divididos. Nesta Carta, o Papa Francisco convida toda a Igreja a voltar-se para o Coração de Cristo, a fim de reencontrar a unidade entre fé e vida. Ele nos chama a superar o dualismo entre uma espiritualidade desligada do mundo e um ativismo sem alma, redescobrindo na misericórdia e na ternura o verdadeiro centro do cristianismo. E nos ensina a repetir, com confiança filial: “Jesus, eu confio em Vós.” A “Dilexit nos” é, enfim, um apelo ardente para que a humanidade volte a sentir e agir com o Coração de Cristo — um coração que une amor e verdade, fé e ternura, contemplação e compromisso. O Papa recorda que toda transformação verdadeira começa no interior do ser humano e nos exorta a crer que o mundo pode ser renovado a partir do coração. Passamos, então, à “Dilexi te”, que parte da expressão do Apocalipse “Eu te amei” (Ap 3,9), dirigida a uma comunidade pobre e sem prestígio, mas amada por Cristo. O Papa Leão XIV, como já mencionado, retoma o projeto inacabado de Francisco, mostrando a ligação inseparável entre o amor de Cristo e o amor aos pobres. A pobreza torna-se lugar privilegiado de encontro com Deus e caminho de santificação. O Evangelho é apresentado como a revelação do amor divino que se identifica com os pobres. Jesus nasce, vive e morre pobre; faz-Se um com os marginalizados e excluídos, dentro da lógica do Reino: “Felizes os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). Afinal, a fé verdadeira se manifesta nas obras de misericórdia, conforme ensinam o Evangelho segundo Mateus (25) e a Carta de São Tiago: “A fé sem obras é morta.” A “Dilexi te” descreve o grito constante dos pobres na história, que jamais pode ser ignorado. A pobreza — material, social, moral e espiritual — apresenta múltiplas faces de um mesmo sofrimento. Do mesmo modo, a indiferença, a cultura do descarte e a falsa meritocracia são denunciadas como pecados sociais. A Encíclica critica a ilusão de felicidade baseada na acumulação e nas desigualdades estruturais. “Deus ouve o clamor do pobre e envia libertadores” (cf. Ex 3,7-10), recorda o Papa Leão XIV. A opção pelos pobres não é ideológica, mas teológica: Deus Se revela na pobreza e age com compaixão. Assim, o texto retoma a tradição latino-americana — especialmente Puebla — e o testemunho dos profetas do Antigo Testamento. O Messias pobre é o próprio Jesus, que anuncia libertação aos oprimidos e Se apresenta como Senhor dos pobres e para os pobres. Inspirando-se em São Francisco de Assis e no Papa Francisco, o Papa Leão XIV reafirma: “A Igreja deve ser pobre e para os pobres.” A verdadeira riqueza da Igreja está em seus membros sofredores. Exemplos de santidade — de São Lourenço a Santo Agostinho — ilustram como o cuidado com os pobres é inseparável da fé e do culto. A Carta revisita a tradição viva da Igreja: os Santos Padres — Inácio de Antioquia, João Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho — defenderam a justiça e a partilha como expressão da fé; a vida monástica, com Basílio Magno, Bento de Núrsia e Bernardo de Claraval, uniu oração e serviço aos pobres; e as Ordens Religiosas, como os Trinitários e Mercedários, libertaram cativos, oferecendo a própria vida. O Papa Leão XIV ainda afirma que o amor aos pobres se concretiza no cuidado com os doentes, presos e oprimidos, mostrando que, desde São Cipriano até São Camilo de Léllis e as congregações femininas, a Igreja transformou a compaixão em ação. Afinal, cuidar do enfermo e libertar o cativo é participar da missão de Cristo Redentor. Por fim, a “Dilexi te” convida toda a Igreja à conversão do coração e das estruturas, para que os pobres sejam reconhecidos como sacramento vivo de Cristo; para que o culto e a liturgia estejam inseparavelmente ligados à caridade; e para que a fé se torne concreta na solidariedade, na justiça e na fraternidade universal. A “Dilexi te” é uma teologia do amor encarnado, que une contemplação e ação, fé e justiça. Ela recorda que servir aos pobres é servir ao próprio Cristo, e que somente uma Igreja que escuta o clamor dos pobres pode refletir plenamente o rosto misericordioso de Deus. “Dilexit nos” e “Dilexi te” são, portanto, duas expressões complementares de um mesmo amor: o amor que brota do Coração de Cristo e se derrama sobre os corações dos pobres. Esta síntese é apenas um “gostinho de quero mais”; por isso, não dispense a leitura integral dessas preciosas Cartas do Magistério.
(*) Ariovaldo Lunardi é teólogo e autor do livro Santo Antônio de Pádua, Vida Orações e Milagres
